Instituto de Estudos sobre o Modernismo

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domingo, 21 de agosto de 2011

Armando Côrtes-Rodrigues, o poeta que a Ilha escondeu - Anabela Almeida


«Recebi uma antologia prefaciada por Eduíno de Jesus, aos poemas de Armando Cortes Rodrigues, que este me enviou, com dedicatória muito gentil. Confesso-lhe que pouco sabia dele, e era quase tudo em função de Fernando Pessoa. Agora, que se delineou a meus olhos uma personalidade definida, vejo que ignorava um poeta de verdade, dos melhores de Orfeu»               
Cleonice Berardinelli, carta a Joaquim Montezuma de Carvalho, em 16/7/1956


Anabela Almeida
(annabelaalmeida@gmail.com)
Armando Côrtes-Rodrigues foi-me apresentado pela professora Teresa Rita Lopes num seminário de estudos pessoanos de um longínquo mestrado de 1992-1994. Eu e os meus companheiros desbravávamos os caminhos de Orpheu e, tendo ficado intrigada com aquele «Armando Violante de Cysneiros», percorri as livrarias da capital na tentativa de o conhecer. Porém, nada mais consegui que um exemplar da antologia prefaciada e organizada pelo professor Eduíno de Jesus, em 1956, de resto, o livro que deu a conhecer o poeta açoriano, nos últimos 50 anos, à maioria dos poucos que o conhecem neste lado de cá do Atlântico e, ouso afirmar, em terras ilhoas.
     A razão da ausência do poeta no continente deu-ma um livreiro: «As edições açorianas não circulam por cá». «As edições açorianas»! Mas se não circulam, em Portugal, as edições portuguesas, por onde circularão elas? Retorqui com esta interrogação retórica que expressava a minha perplexidade. - Não podia ser! -. Afinal, quando eram passados quase vinte anos sobre o 25 de Abril, Açores continuava a ser distância, a aproximação que duas horas de um voo nos trouxera, fragilizava-se nos livros que não chegavam sequer ao cais. Assim era há vinte anos e, tanto quanto me parece, assim continua a ser. No entanto, ainda que não existisse este absurdo, não teria encontrado a maior parte da obra publicada de Côrtes-Rodrigues e, tão só, porque estava esgotada e assim continua.
     Dirigi-me então às bibliotecas das duas principais Faculdades de Letras de Lisboa e também aí nada mais encontrei do poeta. A gentileza do Instituto Cultural de Ponta Delgada e da Livraria Gil fizeram-me chegar a Lisboa o que havia nos Açores e a Biblioteca Nacional forneceu-me o resto.
     A obra publicada do poeta consta de: três peças de teatro, uma delas, Quando o Mar Galgou a Terra, adaptada ao cinema; quatro livros de poesia publicados pelo poeta e dois póstumos; uma antologia organizada e prefaciada por Eduíno de Jesus; dois volumes de “crónicas”, Voz do Longe; um volume da correspondência com Eduíno de Jesus que inclui a que este poeta lhe enviou; três volumes do Cancioneiro Geral dos Açores, dois do Adagiário e um do Romanceiro, textos da Literatura oral, tradicional e popular recolhidos e organizados pelo poeta; prefácios e posfácios e centenas de outros textos (crónicas, ensaio, entrevistas, discursos, …) dispersos pela imprensa, bem como poemas, contos e textos para teatro. É obra!
     Sessenta anos de escrita de um poeta que eclodiu em Orpheu e que, de volta à sua Ilha, revela um novo aspecto da sua estética com o livro Em Louvor da Humildade, uma poesia de carácter telúrico que pulsa com o movimento autonómico, bem como com os movimentos culturais portugueses que entre 1910-1915 se afirmaram em Portugal com pendor nacionalista. Esta heterogeneidade, aspecto fundamental da estética e ética modernista, continua a expressar-se em cada novo livro que publica, diferente, não oposto ou contrário, aos demais, Cântico das Fontes, Cantares da Noite, Horto Fechado e, postumamente, embora organizado pelo poeta, Planície Inquieta. De resto, é ele quem deste modo de si fala, ainda que seja avesso a falar de si:
«De facto, quando atento em tudo o que escrevi, vejo uma irregularidade de linha evolutiva e que tracei sem descortinar os motivos disso, tão naturalmente ela brotou de acasos da vida. (…) Se tivesse continuado em Lisboa não teria escrito “Em Louvor da Humildade” (…) Vim de Orfeu, desci ao Povo, subi a uma fase de franciscanismo mais intenso em “Cântico das Fontes”, meti-me outra vez a caminho de Orfeu com “Cantares da Noite” e depois e mais “Horto Fechado” e de novo me encontrei surpreendido outra vez na fase inicial, voltado novamente para a terra no livro que ando a escrever»[1]
     Armando Côrtes-Rodrigues nasceu em Vila Franca do Campo, em S. Miguel, em 1891, precisamente no mesmo ano e no mesmo espaço em que outro grande poeta, Antero de Quental, pôs termo à vida. Em 1910, veio estudar para Lisboa e, 5 anos depois, regressa à sua Ilha onde para sempre se fixará. «Difícil não é vir, mas ficar. Difícil não é ficar, mas voltar»[2]. Dirá, em Lisboa, João Afonso, a propósito do insulamento do poeta açoriano. Com efeito, Côrtes-Rodrigues veio, ficou, mas voltou. Da Ilha, onde se fez árvore[3], tentou erguer pontes por onde circulasse, nos dois sentidos, a sua arte, estabelecendo correspondência com inúmeras figuras da literatura e cultura portuguesas e brasileiras, como foram, de entre tantos outros, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Eduíno de Jesus, Jorge de Sena, Vitorino Nemésio, Alberto Serpa, José Enes, Luís da Silva Ribeiro, Hernani Cidade, Castro Soromenho, Fernando Pires de Lima, Paulo Quintela, Dante de Laytano, Pedro da Silveira e David Mourão-Ferreira, no entanto, tal como acontecera com Cleonice Barardinelli, são muitos os que desconhecem “um poeta de verdade”. Oxalá consigamos, num futuro próximo, que sejam muitos a conhecer o poeta de quem Fernando Pessoa disse ser «directamente de Orpheu»[4] e sentiu ser ele, de entre todos os que constituíram a revista do século XX português, aquele que «melhor e mais de dentro»[5] o compreendia. Para tal pretendemos cumprir o desejo do poeta, expresso numa entrevista que deu a Mário Dias Ramos, poucos meses antes da sua morte física: publicar a sua obra completa e um «livrinho com as coisas daquele tempo», o Tempo de Orpheu.
Anabela Almeida é investigadora do Instituto de Estudos sobre o Modernismo e prepara, actualmente, sob orientação do professor Fernando Cabral Martins, a sua tese de doutoramento sobre Armando Côrtes-Rodrigues. O seu trabalho implica também preparar a reedição crítica da obra édita e dispersa e a publicação da obra inédita deste poeta do modernismo português.



[1] Armando Côrtes-Rodigues – Eduíno de Jesus, Correspondência, Ponta Delgada, Museu Carlos Machado, 2002, pp.87 e 89
[2] A Vila, Vila franca do Campo, 12/11/1960, p.2
[3] «Sou uma árvore diante /Da paisagem da vida…/Meus sentidos, raízes que se afundam / Mais fundo pela terra ressequida, /E folhas que se inundam / De sol delirante / E de chuva de dor, que anda caindo, /Em sobressalto, / A encharcar o mundo…// Mas ao alto, muito ao alto, / Meu coração é uma flor sorrindo  /Para o céu profundo,» Côrtes-Rodrigues, Cantares da Noite – Seguidos de Poemas de Orfeu, Ponta Delgada, Gráfica Regional Editora, 1942, p.43
[4] Nós os de “Orpheu””, Sudoeste, Lisboa, Nº3, Nov. 1935
[5] “É o Côrtes-Rodrigues quem, de todos, melhor e mais de dentro me compreende. Dizer-lhe isto», Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, edição e posfácio de Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, Outubro, 2003, p.149


domingo, 7 de agosto de 2011

Sobre a língua portuguesa - Teresa Rita Lopes


Não foi Pessoa, não senhor, quem disse que a língua é uma pátria. Junqueiro antecipou-se-lhe. E alguns outros o têm afirmado, cada um à sua própria maneira.
A verdade é que há entre as pessoas que falam a mesma língua materna uma funda irmandade que a cor da pele pode parecer desmentir. Ter a mesma língua materna é como ter mamado na mesma teta, é ter crescido para a vida sustentado pelo mesmo leite.
    A língua portuguesa e a cultura que, através dela, se manifesta é o nosso património mais precioso. Só ela nos fará durar para lá do nosso tempo e do nosso espaço. Mas pouco fazemos por isso. E não temos, disso, suficiente consciência.
    É voz corrente que o português anda deprimido com a imagem que as estatísticas da U.E. lhe dão de si próprio.  E uma nação precisa de ter o brio de ser quem é. Não somos bons para criar riqueza, está visto, para criar dinheiro a partir de dinheiro. Entre os reprodutores do capital ficamos sempre a perder. É que somos ainda meio campónios, para nós a criação só é concebível a partir de um ser vivo que se reproduza. Ao campónio que somos eu vou dizer que a nossa língua portuguesa é um cabedal que não cabe em conta bancária nenhuma : é uma galinha com muitos pintos – já que falamos de criação…- esses inúmeros falares a que deu vida pelo mundo fora.
    Além de nos projectar para lá da tacanhez do nosso rectângulo, o contacto praticado com esses diferentes falares pode ter o salutar efeito de rejuvenescer a nossa língua-mãe, menos maleável por ser mais velha. Infelizmente esse nosso contacto limita-se ao consumo de novelas brasileiras, através da televisão. É quase nada mas melhor que nada: podemos assim sentir a “gostosura”  que a nossa língua pode ter quando falada  por brasileiros. É que o português do Brasil é mais criativo, mais moldável pela afectividade que nos caracteriza, a nós e a eles: pegam numa palavra, por mais invariável que a gramática diga que ela é, e acrescentam-lhe um sufixo que a torna mais saborosa. Apesar de abusarmos dos diminutivos, nós não dizemos “nunquinha” para tornar “nunca” mais definitivo, nem “unzinho”, bem mais terno que “só um”, para pedir um beijo ou um abraço…Bem que o Guimarães Rosa soube levar às suas últimas consequências expressivas as potencialidades em que a nossa língua é rica. Também outros escritores africanos de língua portuguesa o fazem hoje em dia, e nós deliciamo-nos com o sabor que a nossa língua tem com esses condimentos.
    Pouco fazemos para cultivar esses contactos enriquecedores. Até os livros pouco ou nada circulam – os nossos, lá e os deles, cá – por razões monetárias : é que a venda dos livros é um negócio , como o de qualquer outro produto, e quando essa circulação não é rentável, não acontece. Teria que haver uma porfiada política cultural para acudir a essa situação.
    Quando descobrimos essas terras , éramos poucos para as povoar. Agora estão povoadas, não somos é capazes de praticar a nossa irmandade. Não basta proclamarmo-nos nações irmãs.
    Temos, por outro lado, de dar aos portugueses de segunda geração espalhados pelo mundo o brio de pertencerem a essa língua-pátria e condições para praticarem a sua cultura. É uma árdua mas importantíssima tarefa.
    A ortografia é um problema menor. Pessoa queria restabelecer a antiga ortografia com base etimológica. Sou inteiramente contra. Uma das razões por que o Francês perde alunos é a tremenda dificuldade que a sua ortografia –etimológica – põe aos aprendizes da sua escrita. A ortografia é sempre uma convenção. Convencionemo-la, pois, da forma mais simples e sensata. Sem pruridos nacionalistas, com tem acontecido
nos nossos tormentosos acordos ortográficos com o Brasil.
Uma coisa é certa: o nosso futuro está nessa grande pátria mestiça que, através da língua, podemos ser. E a mestiçagem é sempre enriquecedora, quer se trate da língua, do sangue ou dos géneros literários.

Carta de Álvaro de Campos*


Tive conhecimento do burburinho causado por uma prova de exame em que um dos meus poemas foi razoavelmente maltratado pelos examinadores. Queriam eles que os examinandos detectassem as sensações que eu estava experimentando quando o escrevi, porque lá digo que “vi” (e não repararam que acrescentei “mas não vi”) e que imagino os vizinhos da frente a cantarem dentro de casa (embora não tenha a certeza: “Sim, devem cantar…” traduz uma suposição). 
Ora a verdade é que eu não estava experimentando sensações nenhumas: estava pura e simplesmente, como frequentemente me acontece, às voltas na cama com a minha insónia crónica. E o poema segue o curso desses esfarrapados pensamentos que me assaltavam. Bom, mas já outros comentadores disto falaram, odeio analisar os meus poemas. E também que os outros os analisem. Escalpelizar um poema implica matá-lo primeiro para depois  lhe fazer a autópsia. É pior do que espetar borboletas num álbum: as borboletas, embora percam o essencial, o movimento, pelo menos conservam a beleza da cor e da forma das asas, enquanto que o poema perde tudo, beleza e movimento, como um cadáver na morgue.
Para as perguntas que fazem (ainda por cima mal feitas!) querem os examinadores que os examinandos respondam de uma certa e única maneira. Ora a Literatura, em geral, e a Poesia, em particular, não são ciências exactas, como a Física ou a Matemática. Um poema pode ser objecto de várias leituras, ao ser acolhido pela subjectividade de um ouvinte ou leitor. A relação que um poema (ou qualquer outra manifestação artística) estabelece entre autor e receptor é intersubjectiva: põe a subjectividade de um em comunicação com a do outro, desencadeando neste emoções que têm que ver com as suas vivências existenciais e culturais.
Porque é que os senhores examinadores não se limitam a pedir aos examinandos o comentário de um determinado texto (evitem maltratar poemas que não vos fizeram mal nenhum!) que lhes permita averiguar se eles sabem exprimir correctamente por escrito o seu pensamento, e, já agora, se sabem pensar?! Era isso que lhes devia ser pedido - e, antes disso, ensinado, claro!
Os examinandos submetidos à traumatizante experiência deste exame vão ficar vacinados contra a minha poesia para o resto dos seus dias. De futuro, por favor, deixem os meus poemas em paz! Há por aí tanta prosa desempregada ou mal empregada!
Ponham os pobres alunos a escrever, sem erros, com clareza e precisão, uma carta à família – que é coisa de que todos precisam, quer se destinem às letras, às ciências ou às artes.
O gosto pela Poesia, como pelas flores, pelo mar, por namorar, nasce com o ser.
Um poeta popular do meu Algarve natal, António Aleixo, disse que “não se ensina, não se aprende / Nasce e morre com a gente”. E ele é um exemplo disso. Mas comentários como o que os examinadores deste exame pretendem, ah esses podem inocular no indefeso ser dos examinandos uma definitiva aversão para com tudo o que dê pelo nome de Poesia!
 E se querem impor às crianças modelos rígidos, sugiro que os ponham a fazer redacções como as do meu tempo, sobre a vaca, o mar, o porco, que começavam e acabavam sempre da mesma maneira. Por exemplo, sobre

                                           A  Poesia

A Poesia não é muito útil para a nossa alimentação.
Da Poesia fazem-se poemas e até livros. Os livros servem para pôr nas estantes, sobretudo se tiverem capas bonitas e não estiverem muito estragados.
Os donos dos livros nunca os abrem para não os estragar.
Eu gosto muito de Poesia.
Data e nome.

Foi a fazer redacções destas que me tornei escritor.


Carta de Álvaro de Campos – recebida mediunicamente por Teresa Rita Lopes

Comentário à Prova Escrita de Português - ( 12º ano de escolaridade – Julho 2011)




Pediram-me a minha opinião sobre a “Prova Escrita de Português”, a que os alunos do 12º ano de escolaridade foram recentemente submetidos. Hesitei em pronunciar-me publicamente mas a minha antiga costela de militante (sem Partido), obrigou-me a aceitar fazê-lo, perante a constatação de que os resultados obtidos foram catastróficos: alunos que tinham tido altas classificações durante o ano lectivo saíram do exame com negativa. O pior é que isso, para muitos deles, representa a impossibilidade de se habilitarem a entrar nos cursos para que se sentem vocacionados por ficarem, com essa  nota a Português, com uma classificação inferior à requerida para o seu acesso. E isso é grave, porque está em jogo o futuro desses jovens. Por isso, arregacei as mangas e pus-me a analisar (como aliás sempre gostei de fazer com os meus alunos e espero que os professores o façam com os seus) o poema de Álvaro de Campos que lhes coube em sorte: um do penúltimo ano de vida, de 16.6.1934, que começa “Na casa defronte de mim e dos meus sonhos”.
A escolha do poema foi infeliz: o seu bom entendimento implicaria um conhecimento aprofundado da poesia de Campos que não pode ser exigido a alunos deste nível. Além do mais, as perguntas não estão bem formuladas nem são as que conduziriam ao entendimento do poema que se quer averiguar se o aluno teve (e que duvido os próprios examinadores tenham tido, perante tais perguntas e os “cenários de resposta” que apresentaram).
A primeira pergunta, sobre “as duas sensações representadas nas quatro primeiras estrofes”, distrai da verdadeira compreensão do poema, que é, do princípio ao fim, a taquigrafia de um monólogo a que Campos se entrega, como em muitos dos seus outros poemas. Através dele, vamos assistindo à marcha do pensamento do Poeta e ao desfilar dos sentimentos que desencadeia. Porque é de sentir sentimentos e não “sensações” que o poema essencialmente trata. Quer o examinador, nesta primeira pergunta, que o aluno fale “das sensações visuais e auditivas” presentes nas quatro primeiras estrofes do poema. É ter em pouca conta a sua inteligência querer apenas fazê-lo provar que o Poeta não é cego nem surdo, porque diz “que viu mas não viu” e que ouve vozes no interior da casa (como se explicita no “cenário da resposta”). Nada nos diz que o Poeta não está à sua secretária, a evocar apenas o que habitualmente vê e ouve: não assistimos a uma verdadeira reacção a um estímulo sensorial. Das pessoas que moram em frente diz, com um verbo no passado (portanto, evocando uma visão, não vendo): “vi mas não vi”. Também as ouve, aparentemente  da mesma forma: das “vozes que sobem do interior doméstico” diz que “cantam sempre, sem dúvida”, o que mostra que não as está a ouvir mas a imaginar (logo, é imaginação, não sensação). O verso seguinte “Sim, devem cantar”, reforça a suposição. Seria preciso, ao formular as perguntas, respeitar o facto indesmentível do poema ser um monólogo que o Poeta murmura por escrito enquanto contempla, talvez só com a imaginação, “os outros”– esses vizinhos que vê sem ver porque lhe são inteiramente estranhos.
O que seria preciso entender – e sobre isso sim, questionar o aluno – é que o Poeta olha (ou se imagina olhando) para a casa fronteira à sua como um menino pobre para uma montra de brinquedos: tudo o que aí vê e ouve é uma manifestação dessa “felicidade” que ele não sabe o que é mas cobiça: crianças, flores, cantos, festas. “Que felicidade não ser eu!” Falando várias vezes o Poeta de “felicidade”, seria pertinente questionar o examinando sobre o sentido desse sentimento (bem mais importante do que as sensações ver e ouvir que querem que ele referencie).
Pedir para caracterizar o tempo da infância tal como é apresentado na terceira estrofe do poema, e esperar, como se vê no “cenário da resposta”, que o aluno apenas fale “do ambiente de despreocupação feliz, sugerido pelo acto de brincar”é de uma profunda  superficialidade …
Quanto à pergunta seguinte sobre “a relação que o sujeito poético estabelece com os outros” percebe-se, pelo “cenário da resposta”, que o examinador quer que o aluno fale apenas da “diferença”que o Poeta sente que o separa dos “outros”, porque «os “outros” são felizes».  O facto do Poeta exclamar “São felizes porque não são eu” mostra que essa “felicidade” é, não um verdadeiro sentimento que os outros experimentem mas o sentimento que o Poeta tem de que é uma sorte ser outra pessoa qualquer, que o verso seguinte “Que grande felicidade não ser eu!” exprime plenamente.
Seria interessante, isso sim, fazer o aluno falar sobre o papel e o significado das interrogações súbitas, nomeadamente “Quais outros?” porque são elas que traduzem e nos fazem assistir ao evoluir do pensamento do Poeta, que se põe em causa a si próprio, isto é, ao que está pensando no decurso do seu monólogo interior. Assistimos, assim, à transição, desencadeada por essas perguntas, de um “eu” para um “nós”: do sentimento inicial de solidão total, de ser apenas um “eu”, uma ilha de solidão, ao de pertencer a um “nós” – a humanidade: “Quem sente somos nós, /Sim, todos nós” - embora cada um a sós consigo. Cada um sente e sofre sozinho mas isso não o impede de fazer parte de um “nós”. Seria demais esperar que o aluno soubesse dizer que é esta uma característica da atitude de Campos: o sentimento de que é uma ilha de solidão, quando diz “eu”, mas de que pertence a um arquipélago, quando pronuncia “nós”. Mas não seria excessivo esperá-lo do examinador.
A última questão presta-se a muitas respostas, não apenas à que é indicada no “cenário de resposta”, que espera referências à “dor” e ao “vazio” “expressos na última estrofe, particularmente no verso «Um nada que dói…»”. Os examinadores não perceberam a sua subtilíssima ironia: depois de afirmar que “já” não está sentindo nada, o Poeta corrige-se, com um sorriso de vaga ironia triste: “um nada que dói”. Se o aluno conhecesse razoavelmente Campos – o que seria demais exigir-lhe mas não ao examinador– referiria que esse incómodo, essa vaga dor é o que, noutro poema, o Poeta chama “o espinho essencial de ser consciente”.



Só uma nota: não estou a querer pôr ninguém em causa: não sei nem quero saber quem elaborou esta “prova”. Estou apenas a obedecer ao meu velho tropismo de querer ser útil. (Que, diga-se de passagem, muitos dissabores me tem trazido ao longo da minha já longa vida.)



Teresa Rita Lopes

Para aceder ao enunciado  e assinar a petição, consultar:

http://www.protestoexame2011.blogspot.com/

A Biblioteca Particular de Fernando Pessoa - Carla Gago


A biblioteca particular de Fernando Pessoa (BpFP) configura um testemunho imprescindível para elaborar uma biografia intelectual do autor. A partir da biblioteca pessoal é possível reconstruir indicações bibliográficas esbatidas ou esquecidas com o tempo, fazer reaparecer polémicas esquecidas ou ainda diálogos inesperados com outros criadores literários, reconstituindo, assim, um contexto intelectual mais vasto, e permitindo um diálogo, por vezes inesperado, com áreas específicas do interesse dos autores. Tal como, por exemplo, a questão de uma formação científica mais específica e especializada em Pessoa: a quantidade de volumes especializados denota uma reflexão mais profunda relativamente a temáticas de ciências naturais do que esperaríamos num poeta.
Embora notoriamente reservado em relação às suas dívidas intelectuais, Pessoa era, na verdade, um leitor voraz e a sua produção literária está profundamente impregnada pelas obras que leu. O autor, que é em primeira instância leitor e intérprete antes de ser produtor de sentido(s), permite-nos, através do testemunho material dos seus livros pessoais aceder à dimensão da génese literária e, consequentemente, indagar o estatuto intertextual da sua produção, o diálogo com outras obras, o que recupera ou recusa explicita ou implicitamente.
A BpFP constitui material muito importante ainda a desbravar. As leituras de Pessoa foram, durante muito tempo, se não votadas ao esquecimento, relativizadas e reduzidas ao que o filólogo Mazzino Montinari, no seu incansável trabalho no espólio de Friedrich Nietzsche, designou de ligações “ideais”:

Um capítulo que (...) ainda tem de ser escrito, é o relativo às leituras de Nietzsche. A literatura de “culto” sobre Nietzsche, que começou com Gast, não queria utilizar estas fontes valiosas para não “empobrecer” Nietzsche; a crítica “filosófica” (Löwith – Jaspers? – Heidegger) achava-as menos relevantes do que do que determinadas ligações “ideais”, que descobria em Nietzsche-Hölderlin-Hegel- etc, etc. (25 de Junho de 1966, tradução nossa)

Também Pessoa foi reduzido às “ligações” mais imediatas - no seu caso, as da tradição anglo-saxónica, tal como Whitman ou Browning, pois à primeira geração de pessoanos careceu de distanciamento (principalmente devido ao determinismo biológico) e de uma abordagem necessariamente transdisciplinar para a análise do acervo, optando por relevar antes outros aspectos que, na sua perspectiva, engrandessessem Pessoa, descobrindo, assim, as tais ligações “ideais”. Fernando Pessoa, que mobiliza sempre referências teóricas e estético-literárias de grande elevação, está ao corrente das discussões mais importantes no espaço europeu nas diferentes áreas do saber, constituindo uma absoluta excepção no panorama intelectual português do início do séc. XX.  Não é de estranhar, por isso, que a própria crítica, nomeadamente a primeira geração de pessoanos (mas que influenciou todas as posteriores), não obstante os méritos que se lhes tem obviamente que reconhecer, não conseguissem “encaixar” estas leituras e conceitos nas grelhas de interpretação da obra pessoana.
Com efeito, quando se estuda a BpFP, é necessário ter em mente o contexto intelectual de fin-de-siècle e início do século XX, no qual a explosão de interesses científicos conduz a uma permeabilidade entre as várias disciplinas. Esta promiscuidade temática (Literatura, História, Física, Biologia, Sociologia, etc) faz com que os assuntos que o investigador procura se encontrem muitas vezes em volumes não muito apelativos para o leitor de hoje e que, à primeira vista, não se prendam necessariamente com o tema em questão. É preciso que se diga ainda que, na lista bibliográfica da BpFP, muitos são os volumes que não residem na classe mais adequada (tal não foi corrigido nas últimas publicações relativas à bibliografia da biblioteca, o que prolongará durante algum tempo este handicap), exactamente por os títulos induzirem muitas vezes o bibliotecário ou o investigador em erro quanto ao assunto ou por serem simplesmente de difícil classificação em só uma das dez classes da BpFP.  
            Pelos motivos aduzidos, torna-se, assim, óbvio, o estudo do “miolo” do acervo de leituras de Pessoa (que vai muito para além de uma mera datação de leituras). Só examinando os stimuli de Pessoa é que poderemos entender com a profundidade necessária os temas e as questões para as quais os seus escritos são resposta. Tal levanta, necessariamente, a questão do que é em Pessoa influência directa e indirecta: de Nietzsche, por exemplo, apesar de não constar qualquer volume no acervo, as referências ao filósofo do martelo encontram-se disseminadas por inúmeros volumes na BpFP.
A extensa  marginalia que encontramos nos volumes da biblioteca é notoriamente imprescindível para compreender a «intensidade» e a perspectiva da leitura do autor, mas as linhas de investigação com base na BpFP que, na nossa opinião, serão, para além de mais estimulantes, mais bem consolidadas e que poderão apresentar resultados mais profícuos - pese embora o alto grau de dificuldade da tarefa - são as que estão ligadas a um trabalho arqueológico que consiga reconstituir o trilho de alguns conceitos disseminados pela sua obra e que remetem para leituras que efectuou.
Na BpFP, como não poderia deixar de ser, a questão incontornável é a Literatura, que aparece, no entanto, confrontada com temas vários (o positivismo científico, as filosofias da História, a filosofia das ciências, a psicologia experimental, etc), sendo dois dos grandes vectores (se não os grandes vectores) a Religião e a Ciência. Quanto a esta última, seria de certa forma inconcebível que Pessoa não tivesse acompanhado os avanços científicos do final do século XIX. Nesta altura, nenhum intelectual que ambicionasse uma interpretação do universo poderia dar-se ao luxo de ignorar o novo mundo das ciências. Mesmo a filosofia, área cara também a Pessoa, ia, nesta altura, de mãos dadas com o fascínio pelas ciências naturais. É de sublinhar, ainda, que as leituras feitas por Pessoa,  que abarcam todas as novas disciplinas científicas à época, que vão desde a psicologia experimental às teorias evolucionistas, passando pela termodinâmica e pela física, não lhe providenciaram unicamente novas ideias e teorias que ele explorou nos seus escritos mais teóricos mas também conceitos, ideias, imagens e metáforas que se encontram disseminados pelo seu universo textual. Tal como a insistência no conceito de “instinto” que à primeira vista se poderá dizer nietzschiano ou bergsoniano, mas que na verdade poderá ser lido no sentido de uma moral evolucionista do seu tempo, e cujo substrato assentará, exactamente, em teorias evolucionistas.
Em suma: um estudo da BpFP a partir de uma perspectiva transdisciplinar permitirá não só uma melhor compreensão das práticas intelectuais de uma época, mas sublinha também em que medida o ambiente intelectual, no qual e em função do qual o autor teve uma determinada produção, é essencial para a compreensão da obra.
Carla Gago é investigadora pessoana, uma renomada especialista na biblioteca particular de Fernando Pessoa e integrante do Instituto de Estudos sobre o Modernismo. Estudou Línguas e Literaturas Modernas e Literatura Comparada na Universidade Nova de Lisboa, Universidade Humboldt e Universidade Livre (FU) de Berlim. Foi leitora de Língua e Cultura portuguesas nas universidades de Rostock e Leipzig, estando a concluir a sua dissertação de Doutoramento sobre o género dramático em Fernando Pessoa. Tem vários artigos publicados sobre temas de Estudos Portugueses em revistas, enciclopédias de autores e volumes portugueses e internacionais. 

O Fantástico em Fialho de Almeida e Jean Lorrain - José António Costa Idéias

Pessimismo e Decadentismo Finisseculares
[Outubro de 2010]
José António Costa Ideias
(FCSH-UNL)


 Neste trabalho de Doutoramento em Estudos Portugueses, na especialidade de Estudos Comparatistas, debruçamo-nos sobre um conjunto de práticas narrativas (privilegiando o conto e a narrativa breve), de finais de oitocentos e inícios do século XX - em Portugal e em França - cuja leitura analítica permite melhor compreender um processo de criação literária que parte fundamentalmente da oposição ao Realismo-Naturalismo e que, na gestação híbrida e “imprecisa” de uma narrativa “nova” – na confluência e imbricação de múltiplas estéticas diversificadas – se vai encontrar, largamente, na base do que se considera ser a modernidade estética do século XX. Com efeito, tentamos entender as práticas narrativas de Fialho de Almeida (1857-1911) e de Jean Lorrain (1855-1906) como lugares espectaculares e fantasmáticos de revelação e de denúncia de uma crise ideológica e da sua encenação significante (na recorrente oscilação entre o “documento” e o “fantasma”) que se formaliza numa constante tensão entre o apelo do real e a superação do mesmo - em torno de específicas estratégias discursivas, caracteristicamente finisseculares.
No caso de Fialho, privilegiamos uma leitura de alguns dos seus textos (ainda largamente integráveis na estética naturalista) acentuando a tensão Naturalismo-Decadentismo (os determinismos do meio e da hereditariedade degenerescente e os recorrentes topoi da sensibilidade e do imaginário decadentes que, por via de uma estratégia de representação “deformante” – uma “estética do grotesco” – abre o texto a vastas zonas de um fantástico “físico”, “exterior”), tensão que se nos afigura estruturadora da sua “heterodoxia” estética. Em Jean Lorrain, atentamos na marcada preferência decadente pelos espectáculos do artifício, pelas estéticas da perversão e da surpresa, pela representação e exploração de um fantástico “interior”, da máscara (elemento central do fantástico lorrainiano), num drama espiritual feito de desencontros
 do sujeito consigo mesmo e com o o”outro”.

Tentamos, deste modo, caracterizar os diversos “fantásticos” em Fialho e em Lorrain como motor deste tipo de práticas literárias genelogicamente transaccionais que representam (dão a ler) a vivência pessimista de um real agónico que se procura superar. Na abordagem comparativa dos dois autores – no gesto de aproximação relacional - descobrimos a partilha de uma sensibilidade epocal que, experimentando, cada um a seu modo (em convergências e em divergências) tratarão espaços, personagens, tipologias - que constituem aquilo que designamos como os “fantásticos” em ambos os autores. Respostas diversas a uma comum vivência de um tempo histórico crítico que se encontra na base da génese da modernidade estética do século XX, com prolongamentos
 no nosso século.

(Dissertação de Doutoramento em Estudos Portugueses – Estudos Comparatistas, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa (UNL) em Outubro de 2010 e defendida publicamente em  2 de Maio de 2011).
Prof. Doutor José António Costa Ideias
Doutorado em Estudos Portugueses, na especialidade de Estudos Comparatistas.
Investigador em Estudos Neo-helénicos e Estudos Literários/Culturais Comparados. Membro do IEMo.
Docente do Ilnova /FCSH-UNL (Grego Moderno -Língua e Cultura). Tradutor literário. Ensaísta.

Pessoa ou a senda da sombra - Ricardo Marques


Sobre “Pessoa ou o caminhante livre” de Claire Xavier

Ricardo Marques
O que é e como se pode ler a “alma” de uma cidade? Por outras palavras, quais são as características invisíveis de um lugar que, tendo como natureza intrínseca a sua própria metamorfose perpétua, se afirma exactamente pelo contrário do imaterial, pela visibilidade dos elementos que a vão constituindo? De Lisboa, a “cidade triste e alegre” de Victor Palla e Costa Martins, são famosas várias fotografias que mostram os mesmos lugares-comuns que se vêem nas fotos de Claire Xavier (a calçada, as janelas, o eléctrico). Se encararmos Pessoa/Bernardo Soares, eterno habitante de uma mansarda da Rua dos Douradores, como a sombra autobiográfica de Pessoa, estas fotografias mostram a forma como o espaço citadino foi o LAR, palavra tantas vezes utilizada nesta obra, de onde todo aquele universo literário nasceu – e é nesse caminho livre, nessa senda da sombra, que todos nos sentimos submergir ao ver estas imagens.

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O que é e como se pode ler a “alma” de uma cidade? Por outras palavras, quais são as características invisíveis de um lugar que, tendo como natureza intrínseca a sua própria metamorfose perpétua, se afirma exactamente pelo contrário do imaterial, pela visibilidade dos elementos que a vão constituindo? De Lisboa diz-se ser, por exemplo, a “cidade branca”, como cunhou o filme de Alain Tanner de 1982, ou uma das “cidades das sete colinas”, ou ainda inúmeros outros epítetos que foi criando ao longo de séculos e que as obras literárias foram espelhando. Assim, podemos constatar que neste processo de entender o “espírito” de uma cidade, se parte e se acaba no material e no visível para inventar e mitificar o que uma cidade nos transmite e não se vê – o invisível. Daqui para a ideia de sombra é um breve passo.
Gostaria, nesta breve apresentação, de urgir todos a partir também para estas fotografias de Lisboa, pela objectiva de Claire Xavier, com esta ideia em mente.
De Lisboa, a “cidade triste e alegre” de Victor Palla e Costa Martins, são famosas várias fotografias que mostram os mesmos lugares-comuns que se vêem nas fotos de Claire Xavier. O cenário lisboeta é apresentado em cada uma das fotografias através da selecção de alguns elementos simbólicos que a caracterizam, em que o mais presente é claramente a “janela” ou, em segundo lugar, a “calçada portuguesa” com o seu padrão. Se as relacionarmos directamente com o contexto pessoano, conseguimos percepcionar uma série de elementos que estão presentes neste universo – o eléctrico, as escadas com os seus ferros, as árvores da cidade, e até um café e uma tabacaria que ecoa o famoso texto do escritor. No entanto, e para usar a terminologia de Roland Barthes, Claire encontra o ponto de equilíbrio entre o “studium” – essa característica, exterior às próprias fotografias, mas que provém mais da técnica e da manipulação consciente do mundo – e o “punctum”, esse não-sei-quê totalmente inconsciente que nos toca enquanto espectador, e que nos leva directamente para o interior da fotografia. Transmutado para este caso específico, Claire Xavier apresenta a sua Lisboa das janelas, pátios e calçadas de uma forma pessoal e artística, mas incorpora-lhe magicamente um “punctum” que é própria alma de Lisboa, a sua eterna sombra literária e que tanto a cantou, Fernando Pessoa.
Sabemos que a grande influência intertextual destas imagens é o próprio Livro do Desassossego. N’O Livro, são também várias as referências à ideia da sombra. O vocábulo ocorre sobretudo associado ao importante binómio sono/sonho, por vezes servindo um momento crepuscular do dia (e metaforicamente a atmosfera do livro) e sempre seguindo uma ideia de antítese apolíneo/dionisíaco com o contraponto do sol, bem como a projecção de um outro eu psicanalítico, ambos desenvolvimentos metafóricos bastante embrenhados na nossa cultura ocidental. A sombra é ainda sinal de período de estagnação: (126) “Tenho grandes estagnações. [...] Nesses períodos da sombra, sou incapaz de pensar, de sentir, de querer.”. Vejamos algumas passagens:
[33][1]
Nos primeiros dias do Outono subitamente entrado, quando o escurecer toma uma evidência de qualquer coisa prematura, e parece que tardamos muito no que fazemos de dia, gozo, mesmo entre o trabalho quotidiano, esta antecipação de não trabalhar que a própria sombra traz consigo, por isso que é noite e a noite é sono, lares, livramento. Quando as luzes se acendem no escritório amplo que deixa de ser escuro, e fazemos serão sem que cessássemos de trabalhar de dia, sinto um conforto absurdo como uma lembrança de outrem, e estou sossegado com o que escrevo como se estivesse lendo até sentir que irei dormir.
Somos todos escravos de circunstâncias externas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café de viela; uma sombra no campo encolhe-nos para dentro, e abrigamo-nos mal na casa sem portas de nós mesmos; um chegar da noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque [que] se abra lento, a consciência íntima de dever-se repousar.
[83][2]
[…] Sinto-me tão isolado que sinto a distância entre mim e o meu fato. Sou uma criança, com uma palmatória mal acesa, que atravessa, de camisa de noite, uma grande casa deserta. Vivem sombras que me cercam — só sombras, filhas dos móveis hirtos e da luz que me acompanha. Elas me rondam aqui ao sol, mas são gente. […]

[100][3]

[…] Breve sombra escura de uma árvore citadina, leve som de água caindo no tanque triste, verde da relva regular — jardim público ao quase crepúsculo —, sois, neste momento, o universo inteiro para mim, porque sois o conteúdo pleno da minha sensação consciente. Não quero mais da vida do que senti-la perder-se nestas tardes imprevistas, ao som de crianças alheias que brincam nestes jardins engradados pela melancolia das ruas que os cercam, e copados, para além dos ramos altos das árvores, pelo céu velho onde as estrelas recomeçam.

Por fim, e visto estas serem fotos que são livremente inspiradas n' O Livro, gostaria de terminar esta apresentação com uma passagem dessa obra fundamental do século XX português, e que serve que nem luva no cenário e na atmosfera destas fotografias de Claire Xavier:
[31][4]
O relógio que está lá para trás, na casa deserta, porque todos dormem, deixa cair lentamente o quádruplo som claro das quatro horas de quando é noite. Não dormi ainda, nem espero dormir. Sem que nada me detenha a atenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e por isso não sossegue, jazo na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais desacompanhada, o silêncio amortecido do meu corpo estranho.
Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei sentir, do sono que não consigo ter.
Tudo em meu torno é o universo nu, abstracto, feito de negações nocturnas. Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metafísico do mistério das coisas.

Se encararmos Pessoa/Bernardo Soares, habitante de uma mansarda da Rua dos Douradores, como a sombra autobiográfica de Pessoa, estas fotografias mostram a forma como o espaço citadino foi o LAR, palavra tantas vezes utilizada nesta obra, de onde todo aquele universo literário nasceu – e é nesse caminho livre, nessa senda da sombra, que todos nos sentimos submergir ao ver estas imagens.

Ricardo Marques é investigador do Instituto de Estudos sobre o Modernismo. Actualmente está desenvolvendo uma pesquisa sobre a importância das revistas para o Modernismo Português. A sua investigação possibilitará aos estudiosos do modernismo português o acesso a informações de extrema importância e utilidade.


[1] A edição utilizada é a seguinte: Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, ed. Richard Zenith, Colecção Obra Essencial de Fernando Pessoa nº1, Lisboa, Assírio e Alvim, 2006, pp. 60-61.
[2] Idem, Ibidem, pp. 102-103.
[3] Idem, Ibidem, pp.118-119.
[4] Idem, Ibidem, pp. 58-59.

"O Teatro da Vacuidade ou a impossibilidade de ser eu" - Paulo Borges

Introdução

            Publicamos aqui textos inéditos ou dispersos sobre Fernando Pessoa, muito recentes (de 2008 a 2010) e todos eles alterados, por vezes substancialmente, para este livro. Une-os a tentativa de pensar em Pessoa, e a partir de Pessoa, alguns dos temas que lhe são centrais e que ocupam também um lugar destacado no nosso pensamento e produção filosóficos: a experiência da vacuidade, enquanto transcensão de todas as referências, conceitos e sentidos, incluindo o de “Deus”; a ficção de si, do(s) eu(s) e do mundo, como uma i-lusão ou jogo criador, aqui patente na experiência heteronímica; a emergência da mesma vacuidade nisso que (não) há entre uma coisa e outra, isto e aquilo, esse entre-ser tão bem figurado pelo “King of Gaps” pessoano e que dá o nome à revista/projecto que dirigimos: Cultura ENTRE Culturas; a possibilidade de estados diferenciados, não conceptuais e não intencionais, de consciência, precisamente os que mais ensinam sobre os anteriores temas e cuja tentativa de expressão percorre toda a obra pessoana, conferindo-lhe a “inquietante estranheza” que a singulariza e tornando difícil compreendê-la sem os ter em conta; os sentidos múltiplos de Portugal e da Lusofonia, bem como do Quinto Império, enquanto consumação da sua proclamada vocação universalista num estado transmundano de consciência, na linha de Uma Visão Armilar do Mundo [1].
Além disto, o presente livro oferece estudos comparados entre Pessoa e outros autores – Antonio Machado, Jorge Luis Borges e Emil Cioran - cujas obras dialogam implicitamente com a sua em torno da questão fundamental que a atravessa e que é o eixo do presente volume: a relação entre mesmo e outro, uno e múltiplo e a experiência de um vazio impessoal como matriz de todas as possibilidades, desassossegadoramente aberta no próprio seio do sujeito e do eu convencional, que, ao perder o fundo e a forma da sua aparente definição, se multiplica ficcionalmente em ilimitadas modalidades possíveis, sem que nenhuma delas possa cristalizar-se e fixar-se como algo de real e distinto do abismo de onde procede. Daí o título do livro, por sugestão directa das metáforas teatrais que Pessoa aplicou à sua experiência heteronímica (“drama em gente” ou “em almas” [2]): O teatro da vacuidade ou a impossibilidade de ser eu.
            Este livro prossegue uma relação próxima, e por isso crítica, com a experiência pessoana, que data da adolescência, embora o impacto de Mário de Sá-Carneiro tenha então excedido o de Pessoa. Os temas pessoanos conduziram-nos depois a Teixeira de Pascoaes, que consideramos indispensável ler e meditar em conjunto com o poeta da “Ode Marítima” para se compreender o mais fundo de um e outro e a exterioridade da sua aparente divergência [3].
            É gratificante lançar este livro ao jogo do mundo no momento oportuno em que a obra pessoana começa a ganhar maior visibilidade filosófica, nacional e internacional, após sobre ela ter sobretudo incidido o foco dos estudos literários. Com efeito, a leitura filosófica de um “poeta animado pela filosofia, não um filósofo com faculdades poéticas” [4], como se definiu, parece todavia mostrar haver nele mais densidade de pensamento filosófico - embora formulado por vias híbridas e heterodoxas em relação à tradição ocidental mais académica, como acontece com o mais singular pensamento português – do que ele próprio tendia a admitir. Na verdade, alimentamos a expectativa de que os presentes ensaios possam pelo menos sugerir o imenso diálogo implícito que a obra pessoana sustenta e promove com algumas das mais profundas questões que atravessam a filosofia e a cultura planetárias, ocidentais e orientais, bem como as muitas sugestões e pontos de partida que oferece para uma reflexão inovadora sobre questões fundamentais da mesma tradição filosófica . Esperamos que a constatação disto anime as abordagens filosófica e literária de Pessoa a darem-se interdisciplinarmente as mãos para que toda a sua riqueza de pensador e escritor possa revelar-se a uma outra luz, inaugurando uma nova fase dos estudos pessoanos.
            Se ousamos esperar que o presente livro possa contribuir para tal, minimamente que seja, acalentamos sobretudo a aspiração de que, através da complexidade da experiência pessoana – labiríntico e caleidoscópico entrelaçamento de luzes, trevas e sombras - , possamos nós encontrar o fio de Ariana simplificador e libertador da nossa própria complexidade.

Paulo Borges.“Introdução” a O Teatro da Vacuidade ou a impossibilidade de ser eu,
Lisboa, Verbo, 2011.

Paulo Borges é filósofo, ensaísta e investigador pessoano. Entre várias actividades que vem desenvolvendo (destaque para a importante revista Cultura Entre Culturas), tem dedicado especial atenção ao espólio de Fernando Pessoa sobretudo a parte dos escritos relacionados com filosofia da religião, onde se encontram textos inéditos, futuramente publicados por ele.


[1] Cf. Paulo Borges, Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, Lisboa, Verbo, 2010.
[2] Cf. Fernando Pessoa, Obras, II, organização, introduções e notas de António Quadros, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, p.1024.
[3] Cf. Paulo Borges, O Jogo do Mundo. Ensaios sobre Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, Lisboa, Portugália Editora, 2008.
[4] “I was a poet animated by philosophy, not a philosopher with poetic faculties” - Fernando Pessoa, Obras, II, p.81.

PESSOA, O PRECURSOR - Teresa Rita Lopes


Mal sabíamos nós, os jovens contestatários que, nos anos sessenta, enfrentávamos a Pide, a polícia de Salazar, que tínhamos em Pessoa um precursor! Logo ele, que os amantes de poesia da minha geração liam com recolhimento, tentando ignorar o que dele se dizia, que era um reaccionário, favorável ao Estado Novo que, por isso, lhe tinha premiado Mensagem e lhe divulgava os versos nos livros-únicos de então.
Seguramente por isso nunca simpatizei com Mensagem. Nem hoje, que sei que o nosso poeta que, inicialmente, acolheu Salazar com esperança – de que salvasse do caos o seu tão amado Portugal – foi ficando desconfiado dessa personalidade que julgara íntegra e acabou por explodir em violentos escritos: poemas e textos vários de prosa (até em francês, para o demolir além-fronteiras). Quando eu e os meus parceiros de incursões na célebre Arca  descobrimos o chorrilho de impropérios com que o nosso Poeta fustigara o “seminarista da contabilidade”, o “aldeão letrado”, desabrochámos em pirotécnico júbilo! E mais ainda quando encontrámos os fragmentos de uma carta que foi escrevendo ao sabor da sua indignação, ao longo de vários dias, em que pedia ao Presidente da República que destituísse o seu Presidente do Conselho por ser, assim mesmo dito, “incompetente para o cargo que assumiu”.*
E pensar que, passados quase trinta anos (a projectada carta, que, provavelmente não chegou a acabar, data de 1935, ano da morte), os jovens da minha geração escreveram ao presidente da República, já outro, uma carta no mesmo sentido a pedir, pelas mesmas razões, a demissão do mesmo Salazar! É evidente que esse belo gesto serviu apenas para fornecer à Pide mais alguns autógrafos. Mas hoje, quando, tantas vezes, me zango com os Portugueses, gosto de rememorar esses belos gestos inúteis, mas idealistas, que levaram muitos de nós para o exílio ou para a prisão. Todos sabíamos o risco que corríamos e arriscávamos. Hoje as pessoas só arriscam na Bolsa.
Nessa carta que nos chegou aos bocados, escrita em folhas soltas e em diferentes momentos, Pessoa eleva a voz, no tom de um sermão desse Padre António Vieira que tanto admirava, para exclamar: “Chegámos a isto, Senhor Presidente: passou a época da desordem e da má administração; temos boa administração e ordem. E não há nenhum de nós que não tenha saudades da desordem e da má administração. Não sabíamos que a ordem nas ruas, que as estradas, as pontes e as esquadras tinham de ser compradas por tão alto preço – o da venda a retalho da alma portuguesa.” Noutra folha – noutro fragmento – remata, em prosa, com uma afirmação que também fará em verso: “Realmente é um Estado Novo, porque este estado de coisas nunca antes se viu”.
Num longo poema, repetiu, de facto:

Sim, é o Estado Novo, e o povo
Ouviu, leu e assentiu:
Sim, isto é um estado Novo
Pois é um estado de coisas
Que nunca antes se viu.

E mais adianta, acrescenta:

Com “directrizes” à arte
Reata-se a tradição,
E juntam-se Apolo e Marte
No Teatro Nacional
Que é onde era a Inquisição.

Este poema, datado de 29.7.1935, faz referência, com a palavra “directrizes” entre aspas, ao discurso que Salazar fizera, a quando da distribuição dos prémios com que Pessoa fora também contemplado com Mensagem, em 21.2.1935, em que, como denuncia na tal carta ao Presidente da República, “abre a sessão com um discurso em que enxovalha todos os escritores portugueses – muitos deles seus superiores intelectuais – com a fútil imposição de “directrizes” que ninguém lhe pediu nem pediria(…)”. Por isso, acrescenta , “com uma inabilidade de aldeão letrado, de um só golpe afastou de si o resto da inteligência portuguesa que ainda o olhava com uma benevolência, já um tanto impaciente, e uma tolerância, já vagamente desdenhosa”.
É evidente que Pessoa refere o seu próprio estado de espírito. Depois dessa histórica sessão, a que não assistiu (deve ter seguido pela rádio e ter lido o discurso no jornal), a sua rejeição de Salazar foi brutal e definitiva. Aliás, essa tal “tolerância, já vagamente desdenhosa” e “benevolência, já vagamente impaciente”, com que define a sua própria atitude frente ao Presidente do Conselho já tinha sido sismicamente abalada com a apresentação à Assembleia Nacional de um projecto de lei visando a interdição de todas as  associações secretas,  muito particularmente a Maçonaria, que Pessoa sempre prezou e defendeu, embora declarasse nunca a ela ter pertencido. Pessoa publicou em 4.2.1935,no Diário de Lisboa, um violento artigo contra essa proposta, que veio , contudo, a ser aprovada sob a forma de uma nova lei ( nº 2), em 5.4.1935.  Aconteceu, portanto, que a distribuição dos prémios aconteceu  dezassete dias depois do artigo de Pessoa, e funcionou como azeite no fogo. Pouco antes de morrer, Pessoa, em carta a Adolfo Casais Monteiro, recusa a colaboração que ele lhe pede para a Presença, declarando que não mais publicaria em Portugal porque “acabara de acontecer” algo que o impossibilitava de o fazer. Não sabemos o quê. Um discurso de Salazar ouvido pela rádio ou lido no jornal? Notícia chegada de que o seu nome era censurado nos jornais, como afirmou?
É verdade, Pessoa fora para a lista negra. Morreu com essa raiva na alma.
E com o desgosto de não ter podido perseverar numa luta que empreendera, como se depreende do fragmento de um artigo, posterior ao de 4.2.1935 mas nunca publicado, em que ameaça: “Amigos reaccionários: em guarda!” **
E eu que tanto sofri, durante tanto tempo, por imaginá-lo reaccionário!

*Pessoa Inédito: organização de Teresa Rita Lopes. Lisboa, 1993, Livros Horizonte, pp.362-379.
** Ibidem, p.333

Teresa Rita Lopes