Instituto de Estudos sobre o Modernismo

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terça-feira, 13 de março de 2012

Novos dados para a história do Futurismo em Portugal

Preâmbulo (Teresa Rita Lopes):
A Patrícia foi minha (excelente) aluna e já então lhe publiquei, na Mealibra, revista nossa parceira, um texto sobre José GomesFerreira.Reagiu ao meu artigo publicado recentemente no Jornal de Letras -agora no nº 2 da nossa Modernista - "Pessoa, empresário da Íbis, "criador de anarquias" e "de civilização"- dando-me uma notícia relacionada com um primo de Pessoa, de Tavira, dono de uma tipografia e de um jornal, de que eu aí falara, e outra, de que nunca ninguém tinha falado...Respondi que a investigação é uma teia tecida a várias mãos e pedi-lhe que desse forma de artigo à importante notícia que me dera. E ela aí está - pela pena da Patrícia, novo membro do IEMO.

Novos dados para a história do Futurismo em Portugal

Patrícia de Jesus Palma[1]

A 20 de fevereiro de 1909, o Figaro publicou o documento fundador de um novo movimento literário, «Fundação e Manifesto do Futurismo», assinado por F.-T. Marinetti, director da Revista Poesia. Tratava-se de um documento incendiário, provocatório e agressivo que correu o mundo.
O seu tom revolucionário permitiu, nomeadamente em Portugal, que fosse lido como uma «blague carnavalesca», cuja data de lançamento, «nas antevésperas de Domingo Gordo»[2], justificava. Quem assim se exprimia era Xavier de Carvalho, correspondente do Jornal de Notícias em Paris, que, a 6 de Abril de 1909, comentando a peça de Marinetti «O Rei Bombance», reafirmava: «O público recebeu a peça de Marinetti à gargalhada, como já tinha recebido com troça o programa dessa escola literária do Futurismo que o Figaro lançara também (segundo todos o creem) por brincadeira.»[3]
Não obstante, Xavier de Carvalho apenas noticia o aparecimento do Manifesto, fazendo pequenas citações que legitimam a sua perspectiva sobre o assunto.
Será Luís-Francisco Bicudo quem, de Génova, remeterá ao Diário dos Açores a tradução integral do Manifesto e da Entrevista de Marinetti, na qual o autor esclarecia algumas das afirmações mais polémicas do texto. Bicudo declarava: «O Diário dos Açores é um dos primeiros, senão o primeiro jornal que apresenta aos seus leitores a nova escola de poesia.»[4]
Em 1981, Pedro Silveira, recenseando a recepção que o Futurismo tivera em Portugal no ano do seu documento fundador, afirma: «O que adiante se reúne, colhido no Jornal de Notícias do Porto e no Diário dos Açores de Ponta Delgada, é tudo quanto na imprensa portuguesa em 1909 foi notícia de ter nascido em Paris, e tendo por pai F.-T. Marinetti, o Futurismo.»[5]
Felizmente, na investigação, nada é definitivo e, por isso, estamos agora em condições de rever esta afirmação, trazendo à liça novos dados para a história do Futurismo em Portugal[6].
Quatro dias antes do Diário dos Açores, a 1 de Agosto, em Tavira, cidade berço de Álvaro de Campos, o jornal O Heraldo («Antigo Jornal de Annuncios») dedicava o seu artigo de fundo a «O FUTURISMO».  Assinou-o Ribeiro de Carvalho, que entre observações pessoais, cita grande parte do Manifesto e da Entrevista, que Luís-Francisco Bicudo viria a publicar na íntegra. Não há, no entanto, nenhuma relação entre os textos dos dois redactores, a não ser naturalmente o seu objecto.
Ribeiro de Carvalho apresenta a nova escola num tom irónico; reconhece-lhe a força – «São estas as musas inspiradoras da nova escola, que pretende tornar os poetas em homens glorificados pela sua acção fecunda na vida, elevando-se com ela» – mas considera-a «uma simples fantasia de poetas».
O texto inicia-se com a referência à origem geográfica da nova ideia:
«chega da Italia, da lyrica e progressiva Milão, com as vibrações de um clarim de guerra, com todo o colorido estranho de um combate á luz crua e ardente do sol dos trópicos e não com a suavidade lendária do radioso ceo da velha terra itálica.
De que se trata? Apenas de uma nova escola literária, á qual o seu creador chamou O Futurismo. E, sendo uma escola poética, dá agora a volta ao mundo, não de lyra trovadoresca sobre o peito, mas de coura e montante, viseira descida sobre o rosto homérico e fatal…»
Depois da tradução de várias passagens do Manifesto e da Entrevista, Ribeiro de Carvalho ironiza: «Dar um beijo em uns lábios inspirados de poeta, para o ouvir cantar em seguida a buzina de um automóvel… Só por uma ironia capaz de empallidecer as estatuas que pelos muzeus tivessem escapado á fúria evangelizadora da nova horda poética…».
Quem assim falava era Joaquim Ribeiro de Carvalho[7], poeta desde os 15 anos[8], a quem Abel Botelho considerava aos 19 ter reatado «a boa tradição renovadora de António Nobre e Junqueiro, por uma fruste legião de medíocres imitadores deploravelmente interrompida.»[9] e Júlio Dantas classificaria como «um dos modernos mestres do soneto português»[10].
Mas não foi a faceta de literato aquela que mais notabilizou Ribeiro de Carvalho: entre a poesia e a tradução[11], Ribeiro de Carvalho tem sido recordado principalmente como herói da República e como jornalista. Em 1897, colaborou no primeiro jornal republicano que foi dado à estampa em Leiria, A Integridade, data a partir da qual espraiou colaboração por grande parte dos periódicos do país, de Norte a Sul e Ilhas.
A sua actividade em prol da República tornou-se incessante. Participou activamente na revolução de 5 de Outubro como aliciador junto do pessoal dos eléctricos e, no dia 5, proclamou a República Portuguesa na varanda dos Paços do Concelho de Lisboa. Em 1911, foi eleito deputado à Assembleia Constituinte pelo círculo de Leiria e sucessivamente reeleito até Maio de 1926, com excepção do período Sidonista (Dez./1917-Dez./1918). Ainda em 1911, criou com António José de Almeida o Partido Evolucionista e o jornal O Radical (Leiria), órgão do mesmo partido, do qual era editor e proprietário. Pertenceu aos Partidos Republicano Português, Evolucionista, Nacionalista e de Acção Republicana. Foi iniciado na Maçonaria também no ano de 1911: primeiro no triângulo n.º 143 de Erra (Coruche), com o nome Liberto, depois passou para a loja Evolutiva (1911), também de Coruche, e, finalmente para as lojas Acácia (1929) e Cândido dos Reis (1933), de Lisboa. Foi membro activo da Carbonária[12].
Entre toda a sua profícua actividade jornalística, destaca-se o período em que dirigiu o jornal República de 1921 a 1924 e depois de 1930 a 1941, que o seu amigo António José de Almeida havia fundado e por cuja memória, em 1930, Ribeiro de Carvalho reanimou.
Nos diversos textos biográficos que consultei acerca de Ribeiro de Carvalho não encontrei, contudo, em nenhum deles, referência à sua colaboração no jornal O Heraldo («Antigo Jornal de Annuncios») (1901-1912) de Tavira, colaboração essa constante e muito significativa[13].
Que relações trariam Ribeiro de Carvalho a Tavira? É o que tentaremos deslindar em seguida.
O Heraldo foi um jornal de longa vida, ao contrário da maior parte dos jornais de província, cuja principal característica é a sua efemeridade. Foi fundado sob a designação Jornal de Annuncios, em 1883, por João Daniel Gil Pessoa, primo em segundo grau de Fernando Pessoa.
Este tavirense[14], visto como «grande empreendedor a quem Tavira deve as mais arrojadas e florescentes das suas empresas industriais»[15], lançou a actividade tipográfica em 1882, fundando a Tipografia Burocrática[16], e iniciou a periodística em 1883.
Profissionalmente era escrivão da comarca de Tavira, o que o terá levado ao estabelecimento da oficina e à fundação do jornal que se destinava sobretudo aos anúncios oficiais das comarcas e das câmaras[17].
Cerca de 1896, João Daniel Gil Pessoa vendeu a tipografia e a propriedade do jornal a José Maria dos Santos[18], que o conduziu até ao n.º 965, de 27/XII/1900, data em que o interrompeu, devido a desentendimentos com a comarca de Tavira. Nesta altura, transformou-o num jornal noticioso e cultural e a 3 de Janeiro de 1901 saiu com o n.º 966 O Heraldo («Antigo Jornal de Annuncios»)[19], publicando-se até 25/II/1912[20].
O Heraldo reuniu à sua volta a elite intelectual da região e foi uma verdadeira escola jornalística e literária para os mais novos. António Crisóstomo dos Santos (1878-1851), filho do director do jornal, foi um dos principais animadores, dedicando-se vida fora ao jornalismo a par da sua principal actividade profissional. Amigo íntimo de João Lúcio, de José Francisco Teixeira de Azevedo e de José Ribeiro Castanho, todos praticamente da mesma idade e estudantes de Direito na Universidade de Coimbra (à excepção de António), fundou com eles, o jornal literário O Reyno do Algarve (13/08-05/XI/1899), onde publicaram textos seus, assim como dos poetas Bernardo de Passos, Bartolomeu Salazar Moscoso e de Teixeira de Pascoaes, colega de curso. Em Coimbra, colaboravam na imprensa local e em jornais como a Ave Azul (Viseu) ou O Campeão (Porto), para onde Joaquim Ribeiro de Carvalho também enviava os seus textos. Não conheço a circunstância exacta que pôs Ribeiro de Carvalho em contacto com este grupo de estudantes algarvios, embora creia que a comum actividade literária e jornalística tenha promovido a natural confraternização.
A 7 de Março de 1901, O Heraldo abriu as páginas a um «Torneio Litterario», tendo em Coimbra e no Porto dois responsáveis pelo concurso: João Lúcio e António Carvalhal, respectivamente. A 4 de Julho publicou o resultado, a fotogravura, a biografia e uma recensão aos livros do vencedor: Joaquim Arnal Ribeiro de Carvalho[21], que havia vencido com 41 votos, a maioria enviados de Coimbra. Estava assim dada a entrada «vitoriosa» de Ribeiro de Carvalho n’ O Heraldo.
A partir de então, a colaboração do poeta e jornalista passou a ser constante, aqui convivendo com poetas algarvios e não só, que recheavam as colunas d’ O Heraldo com os seus textos inéditos: Bernardo de Passos, Maria Velleda, Cândido Guerreiro, Afonso Lopes Vieira, António Correia de Oliveira, João Lúcio, Ribeiro Castanho, Teixeira de Azevedo, Carlos Lyster Franco, Ludovico Caetano de Meneses, Marcos Algarve, Abel Botelho, Manuel Teixeira Gomes, Laurinda Seritram, Raul Proença, Joaquim Rodrigues Davim, Salazar Moscoso, Jaime Quirino Chaves, Augusto de Castro, Augusto Gil, Júlio Dantas, entre outros.
Para além da literatura, os ideais políticos, como a República, a Democracia, a Liberdade, eram comuns à maior parte do grupo de colaboradores d’ O Heraldo. Gente culta, atenta às novidades políticas e culturais, que encontrou n’ O Heraldo de Tavira um espaço de convívio espiritual e de partilha, que acolheu e divulgou não só a modernidade nacional, mas também a europeia, plantando aqui a semente – que viria a florescer em Álvaro de Campos – da primeira vanguarda do século XX: o Futurismo.
Quando em 1917, Carlos Augusto Lyster Franco abriu as colunas do novo Heraldo aos futuristas, aqui colaborando Carlos Porfírio, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros e Santa Rita Pintor, para apenas referir os nomes mais emblemáticos, o seu gesto não era inédito; mas oficializava a «fantasia de poetas» que Ribeiro de Carvalho anunciara na primeira página do Heraldo de 1 de Agosto de 1909.


[1] Doutoranda em Estudos Portugueses – História do Livro e Crítica Textual, da FCSH-UNL, realizando a sua investigação em torno da formação da cultura literária em espaço periférico (Algarve: 1820-1920). O projecto é apoiado pela FCT e é desenvolvido no âmbito do grupo de investigação «Livro e Leitura» do Centro de História da Cultura. Colaboradora do IEMO.
[2] CARVALHO, Xavier de, Jornal de Notícias, Porto, 27/II/1909.
[3] Id., 6/IV/1909.
[4] BICUDO, Luis-Francisco, Diário dos Açores, Ponta Delgada, 5/VIII/1909.
[5] SILVEIRA, Pedro, «O que soubemos logo em 1909 do Futurismo», Revista da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1 (1), 1981, p. 90.
[6] Cf. PALMA, Patrícia de Jesus, A produção literária impressa no Algarve durante os séculos XIX e XX, 2 vols., dissertação de mestrado, Lisboa, FCSH-UNL, 2008.
[7] Nasceu a 7/IV/1880, em Arnal, freguesia de Maceira, concelho de Leiria. Aí fez os seus estudos, com uma passagem pelo Seminário, que abandonou em 1896 para se dedicar ao jornalismo. Veio a falecer em Lisboa a 10/X/1942.
[8] O primeiro livro do autor intitula-se Livro d’um sonhador, Leiria, Tip. Guedes, 1897.
[9] BOTELHO, Abel, «A poesia moderna», in CARVALHO, Ribeiro de, Dolores, 2.ª ed., Lisboa, A Editora, 1906 (1.ª ed., 1899), p. 19.
[10] «Uma carta de Júlio Dantas», in CARVALHO, Ribeiro de, A Eterna Canção: Canção do amor, canção eterna…, Lisboa, Typographia Internacional, 1918, p. 7.
[11] Traduziu J. Rameua, A. Hamon, Zola, Castrorrojo, Louis Bouusenard, Bossi, Maupassant, Shunsuy, Gustave Molinari, Tolstoi, Maximo Gorki, Octave Mirbeau, Blasco Ibanez, Cutulle Mendés, Perez Galdós, paul Bourget, Flaubert , Balzac, para apenas citar alguns.
[12] Cf. MARQUES. A. H. de Oliveira, Dicionário da Maçonaria Portuguesa, vol. I, A-I, Lisboa, Editorial Delta, 1986, col. 288.
[13] Sobre Joaquim Ribeiro de Carvalho, veja-se: MARQUES. A. H. de Oliveira, Dicionário da Maçonaria Portuguesa, vol. I, A-I, Lisboa, Editorial Delta, 1986, col. 288.; SOUSA, Acácio de, VINAGRE, Ana Bela e NOBRE, Cristina (coord.), Dicionário dos Autores do Distrito de Leiria: actualização ao século XX, com fac-símile da edição de 1979, Leiria, Magno, 2004, pp. 810-813; TRIGO, Jorge e BAPTISTA, Luís Miguel, Ribeiro de Carvalho: um republicano com alma de sonhador, Lisboa, Sete Caminhos e Câmara Municipal de Sintra, 2005; http://arepublicano.blogspot.com/2007/12/joaquim-ribeiro-de-carvalho-1880-1942.html.
[14] Nasceu a 14/VIII/1854 na freguesia de Santa Maria e faleceu a 06/09/1902 na rua de S. Braz da mesma freguesia. Foi a enterrar no cemitério do Carmo. Era filho de João Paulo de Araújo Pessoa (natural de Santa Maria, Tavira) e de Maria José da Natividade Gil Cardeira Pessoa (natural de Carcela, Vila Real de Santo António). Casou com Júlia C. Pessoa.
[15] O Heraldo, n.º 1054, 11/09/1902, p. 1.
[16] A oficina foi montada na Rua Borda d’ Água Aguiar, n.os 5 e 7 (actual rua Jacques Pessoa) e depois foi deslocada para a Rua Nova Pequena, 1, 3, 7, 9 e 11 (actual Rua Alexandre Herculano), onde já se encontrava no ano de 1900.
[17] Daniel Gil Pessoa diligenciou nos concelhos de Loulé, Portimão, Lagos e Cuba a edição de jornais semelhantes, de que era co-proprietário, garantindo assim trabalho seguro para a sua tipografia.
[18] Nasceu em 1850 e faleceu em Tavira a 23/08/1921. Casou com Maria do Sacramento Santos e eram seus filhos Maria Catarina Santos, António Crisóstomo Santos, José Maria dos Santos Júnior e Eduardo José dos Santos. José Maria dos Santos foi o fundador da Tabacaria, papelaria e livraria Popular e o segundo proprietário da Tipografia Burocrática e do Jornal de Annuncios, que em 03/01/1901 se converteu n’ O Heraldo. Colaborou nos jornais de que foi proprietário, assim como na maioria dos que se publicaram em Tavira. Desempenhou vários cargos nas Confrarias de Santo António de S. Francisco, na Misericórdia de Tavira, no Hospital do Espírito Santo e no Montepio Artístico Tavirense.
[19] A designação Heraldo era à época dada pelo povo, como narra o director: «Há-de julgar muita gente que o pomposo nome que ora vem substituir o antigo Jornal de Annuncios se deve à arrogante prosápia de qualquer de nós, que sem escrúpulos pela boa razão das coisas, quisesse dar a um simples de província o nome de que usa o mais importante dos jornais do mundo.
                Puro engano. Este segundo baptismo do nosso hebdomadário foi o povo que o fez, esse povo sincero e folgazão que tende a crismar tudo nos mais felizes momentos da sua habitual ironia. Era ele que às quintas-feiras enchia o nosso estabelecimento em procura do “Heraldo” e só ele pode gabar-se da autoria do novo título.» N.º 966, 03/I/1901.
[20] Nesta data foi vendido, assim como a tipografia, aos republicanos Carlos Augusto Lyster Franco e João Pedro de Sousa que os instalaram em Faro e aí iniciaram uma nova fase para O Heraldo subintitulado «Bi-Semanário Republicano Democrático», órgão do Partido Republicano Democrático, que viria, em 1917, a abrir a secção dedicada aos poetas futuristas, «oficializando» o movimento futurista em Portugal, como tem sublinhado Teodomiro Neto (Cf. «O “Futurismo” oficializou-se em Faro com O “Heraldo», Anais do Município de Faro, 2005-2008, vol. XXXV, Faro, Câmara Municipal, 2009, pp. 178-195).
[21] O nome do vencedor surge, por lapso, com «Arnal», visto Ribeiro Carvalho ter concorrido com o pseudónimo Joaquim Arnal, como se sabe, local de nascimento do poeta.